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Boate Kiss: ‘Eu tive minha juventude arrancada’, diz sobrevivente | Agência Brasil

O som alto, de repente, cessou. “Seria uma luta?”, questionou o universitário Gabriel Rovadoschi, aos 18 anos de idade. Uma fumaça se aproximou misturada a gritos dispersos. O cheiro forte aumentou a suspeita de que teria havido alguma intervenção dos seguranças para dissipar a confusão. Nada disso. Ele estava descobrindo os poucos, passo-a-passo, que era necessário fugir.imagem27-01-2023-11-01-43imagem27-01-2023-11-01-43

No pub em que se estava, não viu o palco. Ele cobria o nariz e conseguiu encontrar a saída. ” Coloquei a camiseta na frente da boca e do nariz. Eu tentei não respirar. Era como se eu tivesse mergulho, ” recordou em entrevista à Agência Brasil. Foi o primeiro fim de semana do jovem em uma casa noturna. Tinha sido convidado por um amigo para ir a Boate Kiss, na cidade de Santa Maria (RS), naquele dia 26 para 27 de janeiro de 2013. 

Já passaram 10 anos desde aquela noite, os barulhos, os silêncios, os cheiros e tantas outras lembranças e sentimentos estão presentes. O jovem, nascido em Cachoeira do Sul (RS), foi um dos mais de 600 sobreviventes do incêndio que matou 242 pessoas. “Eu tive a minha juventude arrancada”, diz ele, sobre os efeitos do trauma. 

Pais, sobreviventes e amigos realizam vigília em frente ao Boate Kiss -Agência Brasil / Arquivo

O psicólogo de hoje Gabriel é o presidente da Associação das Vítimas ‘ Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de St. Mary e resolvem dedicar-se a unir o luto e a lutar na mesma frase. Desavisados com a anulação dos quatro-réus julgamento, chama a situação de impunidade.

Os sócios da boate Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann; o cantor da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos; e o auxiliar Luciano Bonilha Leão foram acusados de homicídio pelo Ministério Público Estadual. Eles foram condenados à prisão, mas em agosto do ano passado, o julgamento foi anulado e eles se tornaram livres.

Para Rovadoschi, não há causa para esmorar. Pelo contrário. Busca fazer com que mais vítimas possam falar e trocar sentimentos.

Além de representar famílias em busca de justiça, o rapaz também defende a construção de um memorial às vítimas, mais apoio aos familiares e todas as manifestações possíveis para que tragédias como esta nunca mais se repita.

Confira a entrevista com Gabriel Rovadoschi

Agência Brasil-O que é, hoje, dez anos após a tragédia, a luta principal dos parentes das vítimas e sobreviventes? Gabriel Rovadoschi- A luta que inaugurou o movimento segue sendo a luta pela justiça. Para respostas que deveriam ter sido dadas há muito tempo. Seguimos lutando contra a impunidade, que está diante de nós. Nosso movimento surgiu ainda em 2013 (ano da tragédia) e contempla diferentes frentes: da luta pela justiça, da memória, da memória, da prevenção a novos acidentes e também pelo cão de guarda (para prevenir outras tragédias).

Agência Brasil-Sobre a impunidade, que você cita, a anulação do julgamento, em agosto, impactou a luta de vocês?

Gabriel Rovadoschi -Sem que a justiça seja feita, a mobilização fica mais difícil para a consolidação da memória, para fazer, por exemplo, com a cidade abraçando essa história como história de cada um. Essa falta de justiça fere as outras frentes. Por isso, se faz tão necessário e incessante essa luta pela responsabilidade, não só na esfera criminal destes quatro arguidos, mas também na nossa petição internacional que está em curso na Corte Interamericana de Direitos Humanos que busca outro porão de responsabilidade.

Ouça excerpados da entrevista

Survivente explica como agir a associação das vítimas do Boate Kiss

Agência Brasil-Nesse sentido de gerar consciência e supervisão, as leis Kiss (estado e federal) foram importantes?

Gabriel Rovadoschi -O problema é que a legislação vem sofrendo flexibilizações ao longo do tempo. Nós fomos na Assembleia Legislativa (do Rio Grande do Sul) para tentar frear o processo de aprovação dessas emendas. Entendemos que essas flexibulações atendem aos interesses do negócio e também da ordem econômica, que vão na contramão do propósito do povo.

Mesmo quando mais pessoas vão ser colocadas em risco pela falta de cumprimento das leis? Infelizmente, parece que se tem diminuído a gravidade do que aconteceu ao longo do tempo. E essa gravidade só se intensifica e potencializa. Essa é a nossa luta diária. Acordamos todos os dias com essa insegurança de não ter garantias de que no futuro pode ser feito algo sobre isso.

Agência Brasil-Após a anulação do julgamento, quais são os próximos passos?

Gabriel Rovadoschi -A anulação mudou abruptamente o horizonte que almejamos, que inclui a construção de memorial, para dar novos passos na luta pela justiça. A anulação nos chocou bastante. Estamos com características especiais nos tribunais superiores. A gente esperaria que haja a inversão dessa decisão e que a decisão do julgamento anterior seja respeitada. 

Agência Brasil-Você espera que o marco de 10 anos ajude nessa luta de lembrar e dar visibilidade à causa dos parentes e dos sobreviventes?

Gabriel Rovadoschi -Estes 10 anos representam uma marca forte. Trata-se de um tempo cronológico bastante significativo, e que gera novas informações a partir do acesso ao público, como os documentários que foram divulgados. Acredito que é um período de muita visibilidade e que traz visibilidade à nossa luta pela justiça, que é incansável.

Sabemos que a impunidade é uma palavra que não é estranha no Brasil. Ele está no cotidiano do brasileiro e isso não é uma realidade aceitável.

Pais prestam homenagem às vítimas de Boate Kiss -Agência Brasil / Arquivo

Agência Brasil-Você já realizou encontros em frente ao prédio da antiga boate?

Gabriel Rovadoschi -Fizemos ao longo dos anos eventos e alguma arte na fachada. Fazemos intervenções na fachada com colagens e grafite. Neste sentido, temos a tenda da vigília na praça principal aqui da cidade onde as nossas vigílias ocorrem nos 27 de cada mês. É um lugar da cidade onde é permitido homenagar as vítimas e cuidar dessa memória. Isso ocorreu graças à ocupação deste espaço público para torná-lo permanente. Agência Brasil-E quanto ao memorial?

Gabriel Rovadoschi -Um concurso foi feito em 2017, a partir de um memorial que deve ser construído no local onde funcionava a boate. Nós temos conversado internamente na associação naquele último ano.

Temos avanços significativos nesses estudos sobre como viabilizar essa construção e acreditamos que este ano ainda temos boas notícias em relação a isso. 

Estamos trabalhando bastante earnestly nesse sentido porque não é simplesmente um prédio que vai ser demolido para construção de outro. Ao agitar em um prego, agimos dentro de cada pessoa da cidade. Então, isso precisa ser trabalhado na comunidade no sentido da construção daquele memorial, da responsabilidade emocional que deve ser dada a uma construção. 

Pensamos na perspectiva de que a própria demolição do prédio só acontece com a garantia de que todas as etapas da construção do memorial.

Imagens na vigília em tenda na Praça Saldanha da Marinha. A tragédia foi na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013- Fernando Frazão / Agência Brasil / Arquivo

Agência Brasil-Em frente ao prédio da antiga casa noturna, há escritos como “onde você estava no dia 27?” Qual é a intenção?

Gabriel Rovadoschi- É um apelo à conscientização. Essa frase foi uma intervenção que aconteceu em outubro do ano passado por um coletivo de psicanálise aqui da cidade que vem fazendo diversas intervenções com a gente principalmente naquele final de 2022 para mobilizar as pessoas da cidade para se depararem e se questionarem com essa questão. Todas as pessoas, quando entramos no assunto que pela primeira vez, espontaneamente contam onde estavam, o que ela faz, quem chamou …

É justamente nessa perspectiva de lidar com o trauma coletivo que essa intervenção foi pensada. É uma perspectiva muito interessante, bonita e potente na ampliação da sensação de pertencimento de quem passa lá na frente.

Agência Brasil-Hoje você é psicólogo. Nestes últimos 10 anos como foi feito para lidar com essa história pessoalmente e também no âmbito profissional?

Gabriel Rovadoschi -Individualmente o caminho foi o da terapia. Entendo que é necessário que cada pessoa tenha espaço onde a palavra possa circular e que possa expor sua dor de maneiras diferentes. Nessa vertente, venho investindo bastante nos meus esforços entre os grupos de sobreviventes e familiares das vítimas. Por isso, é muito importante promover o diálogo e as rodas de afeto. Aqui, nas ações da associação, entendemos que o afeto deve ser compartilhado. É o abraço, as mãos dadas … É preciso garantir neste movimento coletivo que há esses espaços. 

Agência Brasil-As reuniões são permanentes?

Gabriel Rovadoschi -Na verdade, as reuniões não têm esse caráter formal. Vou dar um exemplo prático: na hora do julgamento, eu me preocuparia com a forma como a imprensa se aproximaria, e que seria difícil se proteger do noticiário. Nós conversamos sobre isso abertamente. Eu sei que a relação com as lembranças e com a memória para cada sobrevivente e família varia. Não são todos que conseguem assistir à notícia. Pensei em criar uma maneira de nos protegermos disso e, na hora do julgamento, montei um grupo de mensagens para convidar as pessoas a participar. Justamente para que possamos comentar entre nós o andamento do julgamento, os episódios que íamos vivenciar naquele período que eu já previa seriam muito intensos. 

Na hora do julgamento, tivemos mais de noventa sobreviventes por lá e compartilhando esse espaço apesar de ser virtual mas ter um espaço. Muitas pessoas falaram pela primeira vez com outras pessoas desconhecidas sobre onde estavam na boate. Foi um momento de partilha de experiências. Foi muito importante para nós poder suportar aquele momento.

Ato ecumênico em homenagem às 242 vítimas do incêndio de Boate Kiss na Praça Saldanha da Marinha, até a data de um ano da tragédia- Fernando Frazão / Agência Brasil

Agência Brasil-Você é um menino de 28 anos. Como você vê aquele menino de 18 anos?

Gabriel Rovadoschi -Eu estou vivendo o luto ainda deste Gabriel que eu era uma vez por dia. Tentando me reconhecer. Minha juventude foi arrancada. Tento tratar com carinho aquela memória de quem um dia eu fui para poder receber de forma justa outras pessoas que passaram por processos semelhantes.

Agência Brasil-A experiência também te marca como psicólogo?

Gabriel Rovadoschi -Há questões na minha formação que me auxiliam, que me amadurecem também e que hoje eu tento prestar serviço também nesse sentido de conscientização. Ouça abaixo relatando como Gabriel conseguiu sair da boate

Survivente relembra, 10 anos depois, como você conseguiu sair do Boate Kiss

Agência Brasil-Em seu doutorado, você estuda transtornos de comunicação. Existe relacionamento com o que você viveu?

Gabriel Rovadoschi -Eu ainda estou construindo, mas de certa forma sim.  O tema da afasia é do campo da fonoaudiologia e é uma condição neurológica que afeta o idioma. De certa forma, tem que fazer porque reconheço hoje que tem muita relação com a minha história, me identifiquei com essa condição de alguém com afídeo onde se tem algo na cabeça, mas sem a capacidade de dar uma tradução verbal para isso.

Pretendo-se seguir nessa linha de relacionamento entre esse tipo de afídeo longe da cidade de Santa Maria sobre o assunto nesses dez anos.

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